🗑️ Salário a 14 meses. O conforto adormece a nossa capacidade de pensar?
Uma reflexão sobre o impacto que um sistema de recebimento de salários pode ter nos nossos comportamentos e no nosso pensamento.
Aqui vai o primeiro dump de muitos! O artigo #1 normalmente não é o melhor… é só mesmo o primeiro. 😂
Espero que gostes e aguardo feedback. Bom artigo! 👇
Quem me conhece sabe que além do BHOUT - que já vai com o 6° clube a abrir! 🥊 -, nos últimos anos tenho posto tempo num projeto de literacia financeira - o amador financeiro - e nesse contexto estava a falar com um colega sobre como quando nos fazem a papinha toda, facilmente nos acomodamos a deixar-nos levar…
… Isso fez-nos pensar (a propósito da literacia financeira) como o simples facto de recebermos o salário a 14 meses pode ter um impacto tão profundo nas nossas vidas - também a outros níveis. 💭
Quanto mais escrevo sobre este literacia financeira, mais me deparo com estruturas aparentemente inofensivas — quase invisíveis — que moldam o nosso comportamento sem que nos apercebamos.
Uma dessas estruturas é o salário de 14 meses. Algo tão comum em Portugal que raramente é questionado. Está lá, é aceite, funciona. Mas… será mesmo assim tão simples?
Por que razão os portugueses preferem os 14 meses.
Em 2013 [Fonte], o governo português criou a possibilidade de os subsídios de férias e de Natal passarem a ser pagos em duodécimos — ou seja, distribuídos ao longo dos 12 meses do ano. A medida, embora tecnicamente neutra, pretendia dar aos trabalhadores mais liquidez mensal e permitir às empresas gerir melhor o seu fluxo de caixa.
A verdade é que a medida não foi bem recebida. Muitos trabalhadores rejeitaram esta nova forma de pagamento. A maioria queria continuar a receber os subsídios em momentos distintos do ano, como “um salário extra” em Maio e Novembro. A ideia de ter de gerir esse dinheiro mês a mês parecia mais difícil, mais exigente, para as pessoas.
Talvez essa reação diga mais sobre nós do que pensamos.
Facto: As pessoas nesta situação as pessoas preferiram receber salário mais tarde.
Preferimos o modelo dos 14 meses porque, no fundo, nos tira uma responsabilidade. Já sabemos que vamos receber um salário para as férias de Verão ou para o Natal — não precisamos de o planear com antecedência. A decisão está feita por nós. E isso, num mundo onde tudo exige atenção e esforço, sabe bem.
👉 Será que esse alívio momentâneo não tem um custo a longo prazo?
O modelo de 14 meses pode ser visto como uma espécie de automatismo emocional. Ao recebermos reforços financeiros previsíveis em Maio e Novembro, acabamos por criar uma rotina de consumo que gira à volta desses momentos.
Em vez de considerar usar esse dinheiro de outras forma (como margem de segurança ou investimento futuro), acabamos muitas vezes por gastá-lo de forma rápida, pouco pensada — normalmente em férias, presentes ou promoções de consumo que coincidem convenientemente com essas datas.
Esta estrutura favorece o imediatismo. E, ao contrário do que muitos pensam, não é apenas uma questão de disciplina ou força de vontade — é também uma consequência do contexto que nos rodeia.
As campanhas publicitárias, as pressões sociais, as expetativas familiares, tudo converge para que aquele “extra” seja consumido. E isto acontece não porque sejamos irresponsáveis, mas porque o próprio sistema incentiva esse comportamento.
Black Friday em Novembro - o timing será mesmo um acaso? 🤔
Será que pensar mais pode compensar?
Dados [fonte] mostram que a taxa de poupança das famílias portuguesas continua a ser das mais baixas da Europa. Mesmo com reforços financeiros sazonais, poucas pessoas os transformam em poupança estruturada ou investimento. Isso diz-nos muito sobre a falta de planeamento que existe em Portugal.
Atenção - Claro que há benefícios no modelo de 14 meses!
A previsibilidade ajuda famílias a manter alguma estabilidade.
Há quem use os subsídios com inteligência: para pagar seguros anuais, amortizar dívidas ou reforçar o fundo de emergência.
Mas será que o modelo, no seu todo, promove um comportamento inteligente? Ou será que a maioria simplesmente gasta o que aparece — precisamente porque sabe que vai aparecer?
Nos países onde o salário é pago a 12 meses… a gestão financeira é obrigatoriamente outra. Quem quer viajar no Verão teve de poupar ao longo do ano. Quem sabe que vai precisar de comprar presentes no Natal, planeia esses gastos antecipadamente.
Este segundo sistema exige antecipar. Exige pensar. Exige desconforto… e também desenvolve uma competência essencial: a de decidir de forma consciente.
O design dos sistemas em que estamos influencia subconscientemente os nossos comportamentos.
Exemplo: No BHOUT criámos um clube com muito estímulos psicológicos para que as pessoas façam exercício com menor foco na dor associada ao exercício. As pessoas ficam 3-4x mais tempo activas que num ginásio normal.
Estou convencido que o design do sistema de salário a 14 meses retira-nos exigência e cria uma almofada que, se por um lado nos ampara, por outro também nos adormece.
Depois, quando olhamos para os nossos hábitos financeiros — e até para os nossos hábitos de vida — percebemos que muitas vezes o maior inimigo do nosso crescimento não é a dificuldade, mas o conforto prolongado.
O sistema de 12 meses parece ser um sistema simples que incentiva uma sociedade um pouco mais irrequieta, pensante, intencional, estruturada, com mais pensamento crítico.
Porque não escolhermos um sistema que incentive a que as pessoas pensem e não para que se acomodem?
O modelo de 12 meses não gera perda de poder de compra - tem um custo de mudança para as pessoas (porque preferimos o conforto), mas o benefício seria incentivar pessoas a ter que ser mais estruturadas e pensantes, quem sabe mais empreendedoras (até!) - tal como os custos de salário mais fáceis de gerir.
O design dos sistema que nos rodeiam influenciam-nos e à nossa capacidade de pensamento, também.
Pensar é um ato de liberdade
Mais do que uma questão de modelos salariais, este artigo acima de tudo uma reflexão sobre como evitamos pensar. Não por preguiça, mas porque o mundo está desenhado para nos oferecer atalhos.
O salário de 14 meses é apenas um exemplo de como uma solução confortável pode, subtilmente, afastar-nos da responsabilidade de decidir. De planear ou de antecipar possibilidade (boas ou más).
O conforto per si não é um problema, muito pelo contrário — todos precisamos dele. O desafio é o conforto que se instala sem reflexão. Quando não pensamos, não só não escolhemos, como deixamos de saber porquê fazemos o que fazemos.
E isto aplica-se a tudo. Ao dinheiro, sim. Mas também ao trabalho que mantemos porque “não é mau”, à relação que deixamos estar porque “é estável”, à cidade onde vivemos porque “sempre aqui estivemos”.
Há um risco imenso em viver assim: o de acordar um dia e perceber que nunca fomos verdadeiramente protagonistas das nossas próprias vidas.
Pensar e antecipar exige esforço… mas se gerimos as nossas vidas, temos que pensar - e o que nos rodeia influencia. É esse o esforço que nos permite ver alternativas, fazer escolhas conscientes e viver com mais autonomia. É o que nos dá margem para crescer.
O conforto pode ser um excelente ponto de partida. Mas a clareza — essa só chega quando paramos para pensar e olhar para onde estamos a ir.
Nesta história o salário a 12 meses, obriga-nos a parar e pensar. É por isso que, pessoalmente, acho mais interessante.
Vais deixar-te ser gerido?
Conheces outros sistemas desenhados para sermos induzidos a não pensar?